Pode-se dizer que o financiamento privado de grãos nasceu em 1987/1988, com os contratos de “soja verde”, numa época de inflação altíssima e de restrição de crédito oficial. Essas operações foram as precursoras das atuais estruturas de barter (na época, dizia-se ‘escambo’), que nada mais eram do que pré-pagamentos (em insumos ou dinheiro) para produtores, ofertados por trading companies e liquidados por ocasião da colheita em mercadorias. Depois de quase 35 anos, essas operações continuam sendo realizadas por empresas de insumos e revendas, além das próprias tradings.
De 1980 até 1994, quando o País atravessou os anos difíceis de hiperinflação, o valor destinado para o crédito oficial oscilou bastante, “derretendo” no final da década de 1980 e permanecendo em níveis comparativamente baixos durante toda década de 1990.
Naquela época, principalmente na cadeia de soja, procurava-se por alternativas que não utilizassem moeda nacional, pois o crédito bancário sofria com o constante descasamento entre a correção monetária (inflação + juros) e os preços das mercadorias. Foi, então, que se criou a “soja verde”.
A “mágica” estava em financiar produtores de soja (cuja formação de preços é em dólar) por meio de linhas de crédito internacionais associadas a Adiantamentos de Contrato de Câmbio (ACCs) concedidos a tradings, com o compromisso de pagamento em soja após a colheita. Essa modalidade permitia, por meio da indexação das estruturas ao dólar e à soja, que se fugisse da falta de linhas de crédito oficial e da inflação da moeda brasileira.
Na década de 1990, ainda na tentativa de atrair o setor privado para o agro, criaram-se os fundos de commodities e o Certificado de Mercadorias com Emissão Garantida (CMG), que, por diversos motivos, não prosperaram.
Somente em 1994, surgiu um título “vencedor”, a Cédula de Produto Rural(CPR). Criada por meio da Lei no 8.929/94, a CPR trouxe segurança jurídica às operações de financiamento privado.
Com o fim da inflação descontrolada, as políticas de crédito rural oficial(e de garantia de preços) começaram a ser reconstruídas. No início da década de 2000, o setor demandou a criação de títulos de crédito para dar a oportunidade de participação a outros agentes, sobretudo do mercado de capitais.
Em 2004, demonstrando uma excelente visão de futuro, o então ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, fomentou a criação de títulos de crédito para todos os atores que participavam do agronegócio. Os seguintes títulos de crédito foram lançados: o Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA), para emissão de processadores e fornecedores de insumos; a Letra deCrédito do Agronegócio (LCA), para emissão de bancos; o Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA), para emissão de securitizadoras; e o Certificado de Depósito Agropecuário e o Warrant Agropecuário (CDA/WA), para emissão de armazéns.
Mas, de maneira engenhosa, todo o lastro das operações subsequentes partia daquele título de crédito criado em 1994, a CPR, de emissão exclusiva do produtorrural e das suas cooperativas.
Levou um tempo para que os títulos deslanchassem! Além das condições econômicas, dois fatores contribuíram muito para a alavancagem dos títulos:
- Arcabouço regulatório: a legislação era frágil e trazia muita incerteza jurídica às estruturas de crédito do agro. Com o aperfeiçoamento da regulamentação dos CRAs pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em 2018 – por meio da sua Instrução no 600, revogada pela Resolução no 60 –, o mercado de capitais passou a ver o agro como uma alternativa segura.
- Taxa de juros: com a redução da taxa básica de juros da economia (Selic), o crédito oferecido a taxas de juros livres – ou seja, livremente pactuadas entre bancos e produtores rurais – ganhou competitividade, aproximando-se das taxas do crédito agrícola oficial.
Avaliando a evolução da Selic e da inflação, constata-se que, somente mesmo a partir de 2018, é que começa a ficar viável tomar recursos a juros de mercado. Esse ponto é fundamental para entender o novo modelo de financiamento agropecuário, dividindo recursos do Plano Safra e de juros livres de mercado.
Evolução do crédito rural oficial e da inflação (IPCA) e indicação da criação dos instrumentos privados de crédito
Obs.: valores do crédito rural atualizados para 2020
IPCA: Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo; CMG:
Certificado de Mercadorias com Emissão Garantida; CPR: Cédula de Produto Rural; CDCA: Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio; LCA: Letra de Crédito do Agronegócio; CRA: Certificado de Recebíveis do Agronegócio; CDA/WA: Certificado de Depósito Agropecuário e Warrant Agropecuário; CBio: crédito de descarbonização; CIR: Cédula Imobiliária Rural; Fiagro: Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais
Fonte: elaborado pelo autor a partir de dados do Derop/BCB e do IBGE
MERCADO DE CAPITAIS E O AGRO
O recente interesse pelo mercado de capitais no agronegócio surgiu do “casamento” entre grandes empresas de insumos, que possuíam títulos de recebíveis (como CPRs, que representam valores a receber de seus clientes pela venda dos insumos), e companhias securitizadoras, que atuam no mercado de capitais.
Resumidamente, as empresas de insumos vendem aos produtores rurais com a promessa de pagamento futuro, por meio da entrega de produto (ou em dinheiro). Como garantia de pagamento, as empresas recebem CPRs emitidas pelos produtores que adquiriram os insumos. Por sua vez, essas CPRs servem como lastro para as securitizadoras emitirem títulos de créditos – como os CRAs –, os quais são disponibilizados para compra por qualquer investidor (pessoa física ou jurídica). Assim, as securitizadoras atuam como intermediadoras, convertendo as CPRs em títulos negociados no mercado financeiro.
Os recursos obtidos pela venda dos títulos aos investidores são transferidos para as empresas de insumos, que, assim, voltam a ter fluxo de caixa para continuarem a financiar os produtores. Os investidores remuneram-se pelos juros, as empresas financeiras ficam com um spread de juros (comissão), os vendedores de insumos vendem seus produtos e os produtores se financiam. Toda essa “mágica” foi possível graças à existência dos novos títulos, uma regulamentação segura e juros de mercado bem mais reduzidos.
A atratividade dos CRAs (bem como dos demais títulos do agro) reside na isenção de imposto de renda para pessoas físicas. Por isso, os emissores procuram distribuí-los para esse público. Com o avanço das operações, aos poucos, outras empresas e, até mesmo, produtores individualmente estão buscando recursos no mercado de capitais. O desafio, agora, está em diminuir o custo das operações e torná-las mais acessíveis aos produtores e às agroindústrias menores.
Posteriormente, entraram em cena operações voltadas para o agro com Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios (FIDCs), que são fundos de investimento que aplicam uma grande parte de seu patrimônio em direitos creditórios (como títulos do agronegócio), contratos mercantis, debêntures, entre outros.
Recentemente a novidade foi criação dos Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro), por meio da Lei no 14.130, de 29 de março de 2021. Os recursos de investidores, captados por esses fundos, são direcionados para ativos de diversas categorias, como direitos creditórios, imóveis rurais, participações em organizações que explorem atividades da cadeia produtiva agroindustrial, entre outros.
Este artigo foi previamente publicado na revista Agroanalysis – Fundação GetulioVargas, vol. 41 no 08.