A digitalização está presente em inúmeras circunstâncias do nosso dia a dia. Agora, chegou a vez da revolução do dinheiro digital no sistema financeiro brasileiro, por meio do Drex, uma moeda digital, equivalente ao Real, criada pelo Banco Central do Brasil(BCB). A criação do Drex tem como objetivo facilitar o acesso a serviços do sistema financeiro a um custo mais baixo. As operações no agronegócio poderão beneficiar-se de diversas formas, como, por exemplo, na rapidez e na segurança da emissão e da transferência de títulos de crédito do agro e das operações de barter. A tecnologia digital tem impactado a humanidade em muitas dimensões, estando, entre elas, a comunicação, a produção, o comércio, o entretenimento, as finanças, entre outras.
As finanças digitais ganharam um relevante estímulo com os conceitos de blockchain criados há quinze anos. Essa tecnologia permite, por exemplo, que sejam realizadas transferências financeiras de maneira confiável e segura, escrituradas em uma rede digital, verificáveis e passíveis de rastreamento, sem haver a necessidade de participação de intermediários validadores financeiros.
A possibilidade de redução de custos e democratização financeira por meio de sistemas e plataformas em blockchain chamou a atenção de bancos, infraestruturas de mercados financeiros, fintechs e Bancos Centrais.
Com o interesse de construir um mercado financeiro mais eficiente para o futuro, o BCB vem liderando, junto dos participantes do mercado, uma importante revolução de digitalização do real. O último passo importante foi a criação do DREX, o equivalente virtual ao Real físico. Como moeda equivalente, um Drex é igual a R$ 1.
Em uma pesquisa realizada pela Deloitte e encomendada da Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), 66% de toda a movimentação bancária de 2022 foi realizada por meio de plataformas bancárias mobile (celular). Em 2019, esse número era de 43%. Adigitalização financeira foi impulsionada pela pandemia e tem crescido muito rapidamente.
Os gráficos trazem a evolução em três anos dos principais meios de pagamento em quantidade de operações, o que mostra o expressivo grau de digitalização dos clientes bancários. Meios de pagamento e transferências em quantidade de operações (R$ bilhões) observam-se o espantoso crescimento do Pix, a resiliência do cartão de crédito, do cartão de débito, do boleto bancário e do débito em conta (que aumentaram o volume, mas perderam participação percentual) e a diminuição do saque em dinheiro e de outros meios de pagamento (como o DOC, o TED e o cheque).
*DOC, TED, cheque, TEC e interbancário
Fonte: BCB; elaboração pelo autor
O alcance do Drex
É cada vez mais frequente ouvirmos falar sobre bens tokenizados, como obras de arte, formação de jogadores de futebol, músicas, imóveis etc. Atokenização consiste na conversão de algum ativo de valor em um token digital, o qual pode ser utilizado nas transações em uma rede blockchain – que, como mencionado, garante baixo custo, agilidade e segurança nas operações financeiras. Por falta de uma moeda digital regulada, muitos compram criptomoedas com seus reais para pagar por transações tokenizadas.
Por ser justamente um token (versão digital) do Real físico, num futuro próximo, essas operações os ativos tokenizados poderão ser pagos diretamente Drex. O objetivo da criação do Drex é beneficiar serviços financeiros, tais como empréstimos, investimentos, seguros e transações comerciais, facilitando o acesso ao sistema financeiro a um custo mais baixo.
Com a moeda digital, é possível a criação de contratos digitais inteligentes (smart contracts), que são códigos de computador que permitem, por exemplo, a troca de ativos financeiros automaticamente de acordo com critérios predeterminados entre as partes, com segurança e sem a necessidade da presença de um terceiro validador.
Deste modo, o pagamento de um determinado negócio só seria realizado concomitantemente à execução de determinadas condições, como, por exemplo, a transferência de titularidade de um determinado ativo. Deve-se salientar que um dos grandes valores dessa tecnologia é o pagamento versus a transferência do ativo de forma simultânea, eliminando o risco de contraparte. Essa operação síncrona recebe o nome de swap atômico.
Casos de uso no agro
Embora as aplicações ainda estejam no campo das ideias, os exemplos a seguir podem ilustrar soluções hipoteticamente atendidas pela tecnologia da moeda digital:
Os títulos de crédito do agro – Cédula de Produto Rural(CPR),
Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA) e Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA) – poderiam ter seus custos de emissões (e, com isso, a taxa de juros) reduzidos devido a um menor esforço em relação à escrituração e à custódia. Além da possibilidade da eliminação de intermediários nas ofertas primárias e secundárias (fracionada). Os títulos seriam convertidos em tokens digitais e pagos em DREX (um token do Real). Isso possibilitaria a utilização de um contrato digital inteligente (smart constract), que, autentica as informações de ambos os lados, e, estando todas as condições garantidas, estabelece a transferência de titularidade do título já no ato da efetuação do pagamento via DREX.
As operações informais de barter com lastro em CPRs ou notas promissórias poderiam utilizar smart contracts para garantir a entrega de insumos condicionada à emissão do lastro, bem como a liquidação financeira com token de Drex condicionada à liberação das garantias.
Estratégias governamentais focadas em microprodutores, que têm dificuldade de ser atendidos pelo sistema bancário, poderiam ser acessadas por meio de uma fintech ligada à rede blockchain do Drex. Por exemplo, seriam beneficiados os programas de crédito rural do Tesouro Nacional, o pagamento de indenizações de sinistros climáticos do Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro) e auxílios governamentais em geral.
A possibilidade de programabilidade do token de Drex, via smart contract, poderia ajudar na permissão de despesas de recursos de crédito rural subsidiado em tipos de estabelecimentos predeterminados. Isso evitaria que os recursos de programas subvencionados fossem desviados e utilizados em outras atividades.
Quando outros países adotarem suas próprias moedas digitais, os pagamentos entre países também serão beneficiados. Neste sentido, um uso possível seria no mercado voluntário de crédito de carbono. Em muitos casos, os créditos de carbono no mercado voluntário são gerados no Brasil e vendidos para compradores europeus, mas a transferência dos
créditos certificados costuma ser realizada por intermédio de uma certificadora, por exemplo, sediada nos EUA. A liquidação da compra do crédito de carbono com moeda digital programável(Drex) poderia estar condicionada à transferência de titularidade do crédito para o comprador na respectiva certificadora. Dessa forma, a transferência de titularidade seria garantida ao comprador no ato do pagamento do crédito de carbono com Drex, conforme estabelecido no smart contract.
Fase do projeto e próximos passos
O início das operações com Drex está previsto para o final de 2024 e o início de 2025 (quando poderemos fazer Pix de tokens de Drex!). Para tanto, o BCB criou um piloto com dezesseis grupos de agentes financeiros, entre eles os principais bancos e infraestruturas de mercado financeiro, além do Tesouro Nacional.
O primeiro desafio do grupo é estabelecer, a partir da rede de blockchain escolhida (Hyperledger Besu), os conceitos regulatórios de privacidade e sigilo bancário e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Na sequência, o desafio será garantir que todos os participantes da rede tenham as mesmas informações em tempo real, respeitados os aspectos de privacidade e sigilo. Essa característica é chamada de interoperabilidade.
A seguir, serão realizados os testes para aquisição de títulos públicos federais e, talvez, sua negociação no secundário. A plataforma que está sendo construída será o ponto de partida para criar diversas soluções digitais no Sistema Financeiro Nacional(SFN).
A infraestrutura do Drex
O dinheiro disponível da população e das empresas é basicamente constituído por papel-moeda em poder do público,recursos depositados em contas bancárias e/ou investimentos financeiros. A proposta do BCB é possibilitar a transformação de saldos financeiros em poder da população em moeda digital batizada com o nome de Drex. Segundo o BCB, o nome da moeda, além de remeter ao Pix, reuniu as letras “D” de “digital”, “r” de “real”, “e” de “eletrônico” e “x” de “conexão” e “transação”. Muitos pensam que o Pix já seria essa moeda digital, porém este é um “serviço de pagamento”, que pode ser comparado com o DOC, o TED e o boleto. Ou seja, o Pix é um canal de pagamentos, por onde se transfere reais de uma conta- corrente para outra. Já o Drex será o dinheiro digital nas contas- correntes bancárias. O SFN funciona num alto padrão de normas, de supervisão e de participantes. Por isso, o BCB vai utilizar o arcabouço já existente para introduzir o Drex. Ao se transferir recursos de um cliente para outro, os bancos correspondentes utilizam uma camada conhecida como mercado interbancário, do qual participam instituições financeiras, infraestruturas de mercado e o próprio BCB. Essa camada funciona em uma plataforma (gerida pelo BCB) conhecida como Sistema de Transferência de Reservas (STR). O projeto da moeda digital prevê que essas transferências interbancárias sejam realizadas com Drex, em uma rede blockchain privada que dê segurança às transações a um baixo custo. Nas contas-correntes dos clientes, serão criados, pelos respectivos bancos, tokens digitais representativos de Drex, cujas movimentações darão origem às citadas transferências no mercado interbancário. Cabe salientar que os referidos tokens podem abrigar funcionalidades próprias para cada cliente, como pagamentos a prazo, utilização em outros países e sistema de pontos por fidelidade.
O Drex não é criptomoeda
Muitos perguntam se o Drex seria uma criptomoeda (como a bitcoin). Aresposta é não! O Drex é a representação digital do real, possui lastro no seu real e é regulado pelo BCB. Assim, não se pode confundi-lo com a criptomoeda.
Uma diferença fundamental é que a criptomoeda não tem lastro em moeda de verdade; o valor se dá pela possibilidade de escassez, o que significa a promessa de o código criar um número limitado da respectiva criptomoeda. Outra diferença é a regulação. O mercado de criptomoedas não é regulado (pelo BCB, por exemplo), o que favorece o surgimento de “pirâmides financeiras”, muitas vezes envolvendo influencers. Ainda que um vendedor de criptomoeda afirme que ela possui lastro, como em casos de mercadorias armazenadas, como não há regulação, o que nos garante que o emissor dessas criptomoedas, com intenção fraudulenta, não emita um volume maior do que a quantidade de lastro? Quando pensar em comprar ativos ou moedas sem a regulação de Bancos Centrais, saiba que, se alguma irregularidade acontecer, o regulador não poderá ajudar. Sempre desconfie de promessas de rendimentos muito acima da Selic!
Por Luiz Cláudio Caffagni
Nota: agradeço, pelas valiosas contribuições, a Keiji Sakai, diretor da Black Wheels e especialista em blockchain, tokens digitais e smart contracts
* Artigo originalmente publicado na Revista Agroanalysis de setembro de 2023.
** Consultor em derivativos e crédito no agronegócio, conselheiro de
Administração e professor de Pós-Graduação Lato Sensu da
Fundação GetulioVargas (FGV) – luiz@archereducation.com.br